A indústria da Argentina está vivendo uma "Brasil-dependência"? De diferentes formas, esse é o debate que começa a crescer no país vizinho, com uma vinculação cada vez mais nítida entre o aquecimento do consumo brasileiro e a expansão da indústria argentina, cujo nível de atividade subiu 12,4% no primeiro semestre. Menções ao Brasil e sua influência sobre o crescimento da Argentina aparecem com destaque, tanto nos boletins de conjuntura da União Industrial Argentina (UIA) quanto nos ultimos relatórios de inflação divulgados pelo Banco Central.
Segundo a Fundação Mediterrânea, centro de estudos mantido pelo setor privado, a participação do Brasil nas exportações de produtos industriais argentinos deverá alcançar 50% neste ano. Nunca antes houve tanta dependência da demanda brasileira. Em 1997, durante o governo de Carlos Menem, a participação havia atingido 48,9%. Depois foi caindo progressivamente, até desabar em 2002, como consequência da crise econômica vivida pelos dois países. Em 2003, as manufaturas vendidas ao Brasil representaram 26,8% do total, patamar semelhante ao que havia antes da transformação do Mercosul em união aduaneira.
A situação preocupa economistas que veem a necessidade de diversificação dos sócios comerciais. Chile e Estados Unidos, segundo e terceiro destinos das exportações industriais, absorvem apenas 8% e 5,5% do total, respectivamente. "Isso mostra uma clara Brasil-dependência por parte da Argentina e, ao mesmo tempo, indica a importância do comércio intra-industrial", afirma Jorge Vasconcelos, pesquisador-chefe da Fundação Mediterrânea. "Por outro lado, denota também a necessidade de incrementar as exportações industriais aos demais países."
O setor automotivo é onde se vê mais nitidamente essa correlação. De cada 100 veículos fabricados na Argentina, no primeiro semestre, nada menos que 56 tiveram o Brasil como destino final. Isso garantiu crescimento de 56% às montadoras, na comparação com igual período do ano passado, e elas já projetam um recorde de 680 mil unidades produzidas em 2010.
Esse desempenho impulsiona outros setores da indústria, como o de autopeças e as siderúrgicas, com expansão acima de 40%. "Apesar das dificuldades pontuais, o acordo automotivo é o melhor exemplo de como a estabilidade nas regras do jogo estimula investimentos e fomenta o comércio", diz Vasconcelos. Outras áreas também apresentam sinais de dependência do Brasil. Em províncias do norte da Argentina, como Misiones e Corrientes, as exportações de madeira processada dispararam para atender à demanda da construção civil no Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
De olho nas licitações da Petrobras, os estaleiros argentinos assinaram um convênio com o Sinaval, a associação do setor no Brasil, para estabelecer parcerias e concorrer juntos em disputas da estatal. O primeiro resultado saiu nesta semana, quando o estaleiro SPI foi classificado para a segunda fase de uma licitação da Transpetro para 80 barcaças de transporte de etanol na hidrovia Tietê-Paraná.
A absorção de um volume cada vez maior de manufaturas da Argentina não impediu, entretanto, um forte desequilíbrio comercial a favor do Brasil. Nos sete primeiros meses de 2010, o superávit brasileiro nas transações bilaterais alcançou US$ 1,464 bilhão - exatamente o dobro dos US$ 738 milhões registrados em todo o ano passado. A situação levou a presidente Cristina Kirchner a pedir "mais equilíbrio" ao colega Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião do Mercosul, na semana passada. Lula concordou em estimular ainda mais as importações.
Uma das maiores preocupações da Casa Rosada é com o déficit em autopeças. Trata-se, justamente, do outro lado da forte expansão dos embarques de veículos ao Brasil. Para este ano, a previsão da Associação de Fábricas Argentinas de Componentes (Afac) é de um saldo negativo de US$ 7,2 bilhões no setor. O governo criou uma linha de financiamento para novos investimentos e pressiona a indústria.
Em debates na televisão e encontros acadêmicos, analistas ressaltam o papel do Brasil para a Argentina. O economista Javier González Fraga, ex-presidente do Banco Central, diz que o "Brasil caminha para ser uma potência mundial, em um processo como o que viveu os Estados Unidos há cem anos. E nós temos que ser o Canadá dos Estados Unidos, não o México".
O cientista político Carlos Pérez Llana, ex-embaixador da Argentina em Paris e professor da Universidade Torcuato di Tella, comentou recentemente, diante de dezenas de executivos que o ouviam em um seminário empresarial: "Costumamos nos enxergar, dentro do Mercosul, como uma reprodução das relações entre Alemanha e França na União Europeia. Mas estamos mais para Alemanha e Dinamarca".
(aspas)
Por : Daniel Rittner, de Buenos Aires, para o Jornal “Valor Econômico”, 12/08/2010
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