(De propriedade de brasileiros, firmas transportam para o país produtos novos como se fossem itens de mudança e driblam a Receita
Pelas regras da Receita, se estiver "desacompanhada" a bagagem é isenta de tributos, mas nesse caso há o crime de descaminho)
Por uma taxa de serviço que varia de US$ 150 a US$ 350, empresas que pertencem a brasileiros e estão sediadas nos Estados Unidos oferecem o envio de produtos novos para o Brasil sem o pagamento de impostos, o que é proibido pela lei.
Para isso, essas empresas de transporte simulam que computadores, eletroeletrônicos, roupas e brinquedos comprados por turistas nos EUA -ou até mesmo pela internet, por quem está no Brasil- são artigos de uso pessoal que fazem parte de mudança de pessoas que residiam fora e estão retornando ao país. Pelas normas da Receita Federal, itens que fazem parte de mudança (bagagem desacompanhada) são isentos de tributos.
Quem opta por esse serviço recebe até orientação para retirar as embalagens dos produtos para não parecerem novos, antes de colocá-los em caixas que serão enviadas ao Brasil.
Funcionários de quatro empresas -Status Baby Moving, Mundial Moving, Fastway Moving e Interact Moving- informaram à Folha que o envio de mercadorias para o Brasil nessas caixas (de tamanhos que variam de 0,70 m a 1,20 m de altura e 0,45 m a 0,60 m de largura) é seguro. Dizem que a fiscalização quase não existe no país e que entre 60 e 90 dias os produtos são entregues na "porta" da casa do cliente.
"Tem de ser feito como a empresa orienta. Não pode ter mais do que 15 perfumes, cremes ou xampus iguais. No total, pode ter 15 produtos, mas variados, para não caracterizar comércio. Pode trazer na caixa um laptop, um DVD, um videogame e outro eletroeletrônico, no máximo. Tudo fora da embalagem para não parecer novo", diz, por telefone, uma funcionária da Fastway Moving.
A empresa iniciou suas operações na Flórida no setor de mudanças e hoje tem filiais em Massachusetts, Connecticut, Nova Jersey e Pensilvânia.
Um funcionário da Mundial Moving diz que laptop não pode ser enviado; desktop, sim. "As caixas vão para o Brasil como bagagem desacompanhada, assim não há incidência de impostos sobre os produtos."
A Mundial entrega e recolhe caixas para os clientes também em hotéis. "Tem de obedecer as regras. Se colocar 200 cremes, seis laptops, 30 fones iguais na mesma caixa, a possibilidade de parar na alfândega é maior", diz esse funcionário.
As mesmas dicas são dadas por atendentes da Status Baby Moving e da Interact Moving. "Nesse esquema, [o envio] tem de ficar caracterizado como mudança. Tem de ter bom senso, colocar roupas variadas e não dez itens semelhantes", diz um funcionário da Interact, no mercado há 16 anos.
Ao ser questionado sobre o risco de as caixas serem barradas na alfândega brasileira, ele responde: "Só mando quando tenho certeza de que está tudo bem. Se meu embarcador falar que não é um bom momento, espero a hora certa".
Quem mais usa esses serviços, segundo as empresas, são brasileiros com maior poder aquisitivo, que viajam com frequência aos EUA e querem se livrar de malas pesadas. As empresas chegam a embarcar para o Brasil um contêiner lotado dessas caixas a cada dez dias.
Crime de descaminho
Empresas e pessoas que enviam produtos novos disfarçados de usados praticam crime de descaminho (importação sem pagar tributos), informa Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. O que ocorre, segundo ele, é que o Ministério Público não oferece denúncia quando essa situação é flagrada, porque os produtos têm baixo valor e são considerados crimes de bagatelas.
"Essa situação não me surpreende. A maioria dos produtos vem de Miami sem vistoria porque os EUA não estão preocupados com exportação e, sim, com importação", diz Maciel.
E como só 2% dos contêineres que chegam ao país são revistados, o esquema é fácil de ser feito, dizem auditores da Receita em São Paulo.
O número de empresas que faz esse serviço nos EUA, principalmente em Miami, cresce a cada ano. São comuns anúncios em jornais dedicados à comunidade brasileira, especialmente na Flórida. Algumas até fazem promoções -do tipo "mande 5 e pague 4" ou "se, em 90 dias você mandar cinco caixas, a sexta será gratuita".
Até no YouTube há vídeos com dicas que ensinam como "trazer" os produtos (com plástico bolha e sem embalagens, para mostrar que as mercadorias são usadas) para simular o transporte como se fosse mudança residencial.
Produtos importados no valor de até US$ 50 por via postal ou expressa por courier, sem fim comercial, estão isentos de impostos. Acima desse valor, qualquer produto importado está sujeito à tributação, como Imposto de Importação, IPI, PIS, Cofins e ICMS.
O valor máximo de bens a serem importados pelo sistema de remessas expressas é de até US$ 3.000. Nesse caso, a tributação é de 60% sobre o valor da fatura, acrescido de custos de transporte e de seguro.
Companhias afirmam agir dentro da lei
As empresas Status Baby Moving, Mundial Moving, Fastway Moving e Interact Moving informam que atuam no mercado de mudanças dos EUA para o Brasil e que transportam mercadorias de acordo com a legislação brasileira.
"Nós só fazemos mudanças. Às vezes, as mercadorias vão em caixas menores, o que caracteriza uma minimudança. Não enviamos produtos novos para o Brasil sem o pagamento de impostos", diz William Souza, gerente da Mundial Moving.
"O que fazemos é o transporte de geladeiras, sofás, roupas de cama e de outros produtos usados por pessoas que moravam nos EUA e estão voltando para o Brasil. Nesse caso, não há incidência de impostos. Não enviamos produtos novos", diz um funcionário da Status que se identificou como Geandro.
Segundo ele, uma pessoa que morou 13 meses nos EUA tem o direito, quando volta ao Brasil, de levar os produtos que usou, como televisor e outras mercadorias, sem recolher impostos. "É claro que não podemos mandar cinco geladeiras, já que essa pessoa só poderia ter usado aqui uma ou duas."
Há seis anos no setor de logística, a Fastway Moving informa que a empresa é legalizada e cumpre todas as exigências dos governos americano e brasileiro para prestar serviços de mudanças residenciais. Afirma ainda que, ao ser contratada, envia ao cliente a descrição do que pode ou não ser enviado ao Brasil, além de um funcionário ir até a casa do cliente para fazer uma vistoria.
"Quanto aos clientes obterem informações para que tirem das caixas os produtos novos para não serem tributados, não procede (...)", informa a Fastway. A empresa também ressalta que o artigo 160 do decreto nº 4.532, de 2002, dá direito ao passageiro de trazer "um item de cada, informando quantidade, descrição, marca, modelo, ano de fabricação e nº de série para produtos novos".
Inês Perugini, proprietária da Interact Moving, empresa situada na Flórida, também ressalta que o mesmo decreto permite o envio de itens novos que pertençam a brasileiros residentes no exterior -desde que, pela quantidade, natureza ou variedade, não permita "presumir importação com fins comerciais ou industriais".
"Sempre atuei dentro da lei. Se alguém prestou alguma informação diferente desta, está equivocado", diz a empresária. Afirma ainda que a Interact Moving também é uma trading, que faz importações e exportações, mas "com o devido pagamento de impostos".
Falta de fiscais e elevada carga tributária incentivam a prática
Fiscalização insuficiente e elevada carga tributária no país são dois dos principais fatores que estimulam o envio de produtos ao Brasil sem o pagamento de tributos, segundo especialistas consultados pela Folha.
Eduardo Ribeiro Costa, advogado especializado na área aduaneira, diz que a Receita Federal tem instrumentos eficientes -como o Siscomex (sistema informatizado responsável por controlar as operações de comércio exterior) para fiscalizar importações e exportações. Mas que algumas operações são feitas "à margem" desse sistema -caso das bagagens desacompanhadas.
"A Receita tem poucos recursos humanos para fiscalizar IPI, PIS, Cofins e outros tributos e ainda dar conta de fiscalizar toda a fronteira de um país com dimensões continentais."
Com um volume imenso de contêineres chegando ao país todos os dias, a prioridade é fiscalizar a entrada de drogas e de produtos piratas, diz o advogado Cassio Luiz de Almeida, especializado na área aduaneira. "Por isso, talvez a atuação dessas empresas [que cometem irregularidades], não chame ainda a atenção da Receita."
Para Richard Fernando, chefe da Divisão de Vigilância e Controle Aduaneiro da Alfândega de Santos, a fiscalização é suficiente "para inibir os fraudadores". No porto de Santos (SP), que representa 30% do comércio exterior do Brasil, existem 400 fiscais e analistas. Em 2009, foram apreendidos R$ 299 milhões em mercadorias sem pagar imposto ou declaradas com falso conteúdo.
"Pelo porto passam por dia 6.000 contêineres. Se abríssemos todos, pararíamos o comércio do Brasil. Mas o que abrimos é suficiente para criar risco aos fraudadores."
(aspas)
Por : FÁTIMA FERNANDES e CLAUDIA ROLLI, DA REPORTAGEM LOCAL, para o Jornal “Folha de São Paulo”, edição de domingo, 28/03/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário