É justo que Estados e Municípios lutem pela atração de investimentos, mediante concessão de incentivos fiscais e subsídios financeiros ou disponibilização de infraestrutura pública para os empreendimentos.
Cessa a razoabilidade quando essas iniciativas violam leis. No caso específico de incentivos fiscais ilegais, essa violação dá ensejo ao que se denomina guerra fiscal.
É precisamente no campo do ICMS que se constata a mais relevante e persistente guerra fiscal. Ela remonta aos tempos do Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC), sucedido pelo ICM (hoje ICMS). Trata-se, portanto, de uma guerra fiscal que já perdura há mais de cinquenta anos.
A vedação à guerra fiscal foi estabelecida pela Lei Complementar nº 24, de 1975, expressamente recepcionada pelo Constituição de 88. Ela condiciona a concessão de favores fiscais à deliberação unânime do Conselho de Política Fazendária (Confaz), órgão integrado pelos secretários estaduais de Fazenda.
As sanções pelo descumprimento daquela lei são severíssimas. Vão desde a nulidade e ineficácia do crédito atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria até a presunção de irregularidades nas contas do Governador, em cujo exercício ocorreu fruição do benefício ilegal.
Até o final dos anos oitenta, a legislação era piamente observada. A onda descentralizadora da Constituição de 88 gerou, entretanto, um clima favorável a atitudes autonomistas, nem sempre em conformidade com a lei.
Nesse contexto, Estados decidiram conceder incentivos fiscais sem a prévia audiência do Confaz: às vezes, ostensivamente; outras vezes, de forma dissimulada, por meio de generosos financiamentos ao pagamento do imposto.
Hoje, se reconhece que há uma aberta guerra fiscal no ICMS. A Justiça, infelizmente, não conseguiu firmar uma jurisprudência sobre a matéria. O Ministério Público, por sua vez, só episódica e timidamente fez valer seu papel constitucional de fiscal da lei.
Já os Estados bradam ameaças e anunciam retaliações, para afinal, mediante barganhas, sancionar, expressa ou veladamente, as ilegalidades. A guerra fiscal resulta, por conseguinte, de uma generalizada condescendência com o descumprimento da lei.
Na presunção de que não é possível observar a lei, alguns postulam a adoção do princípio do destino no ICMS, como instrumento para eliminar a guerra fiscal.
Com base nesse princípio, as alíquotas interestaduais seriam reduzidas a zero, sendo cobrado o imposto exclusivamente no Estado de destino, onde ocorre o consumo final da mercadoria.
À luz desse entendimento, os Estados não teriam interesse em fazer a guerra fiscal, porque não haveria como transferir o ônus do benefício para o Estado consumidor. A tese é elegante, não fossem suas catastróficas conseqüências.
De início, haveria um enorme desequilíbrio das finanças dos Estados produtores, somente compensável por meio de aumento de carga tributária do próprio ICMS ou de tributos federais a serem transferidos para os Estados, ampliando a iníqua dependência dessas entidades federativas à União.
Em seguida, haveria um estímulo à sonegação fiscal, em virtude da ilegal apropriação de ganhos que ocorreriam ao simular como interestadual uma operação, em verdade, interna.
Por último, as empresas que tivessem um grande volume de operações interestaduais, por força da cobrança no destino, passariam acumular montanhas de crédito sem nenhuma liquidez, pois até hoje não se conhece mecanismo que obrigue os Estados a restituírem créditos acumulados.
A propósito, convém lembrar o calote dos precatórios, a despeito de sua presumida certeza e liquidez, bem como os créditos acumulados nas exportações.
Não é possível enfrentar a guerra fiscal, sem perquirir, contudo, sua motivação. Na essência, constata-se ânimo dos Estados mais pobres de fazer uso de suas próprias armas para mitigar o persistente problema das desigualdades regionais de renda.
A questão não tem uma resposta simples, nem fácil. A solução deveria, no meu entender, incluir um amplo conjunto de medidas integradas: instituição de um programa federal de compensação das desigualdades inter-regionais de renda, compreendendo estímulos fiscais e investimentos públicos; uniformização das alíquotas interestaduais em nível de 7%; gradual extinção, no prazo de cinco anos, de todos os incentivos existentes, inclusive convalidando os que foram outorgados ao arrepio da lei; mudança das regras deliberativas do Confaz, eliminando a exigência da unanimidade e fixando o quórum de ¾; autorização legal para que os Estados possam estabelecer alíquotas internas inferiores à interestadual; aperfeiçoamento na redação relativa às vedações para outorga de benefícios sem prévia audiência do Confaz, visando espancar qualquer dúvida quanto às formas dissimuladas de concessão.
Justiça distributiva é atributo indeclinável do Estado brasileiro. Não se pode, todavia, na consecução desse propósito abdicar do respeito à lei. A guerra fiscal do ICMS deve ser compreendida nesse contexto.
(aspas)
Por : Everardo Maciel,ex-secretário da Receita Federal - "Blog do Noblat"/"O Globo", 01/03/2010
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