terça-feira, 28 de setembro de 2010

Direito antidumping e casos de triangulação

De nada vale a investigação se o produto é exportado via terceiro país

O artigo 10-A da Lei nº 9.019, de 1995, que possibilita que direitos antidumping alcancem também terceiros países, bem como partes e peças de produtos objeto de medidas antidumping em vigor, foi finalmente disciplinado pela Resolução Camex nº 63, publicada no mês passado. A questão parece simples: após a imposição de direitos antidumping no Brasil sobre um produto X com origem do país Y, exportadores passam a exportar ao Brasil o mesmo produto X originário do país Y via terceiros países apenas para burlar o pagamento dos direitos antidumping. Mas o teor da nova resolução traz à tona aspectos bem mais complexos do que a mera triangulação, situação descrita acima.

Após a imposição de direitos antidumping, empresas burlam ou evitam o pagamento dos direitos de diversas maneiras, atividade conhecida em inglês pela expressão "circumvention". As suas principais modalidades são triangulação, montagem do produto em terceiro país ou no país importador por meio de peças e componentes importados do país sujeito à aplicação de direito antidumping ou modificação do produto.

As hipóteses e as consequências da circumvention para a área de defesa comercial são tantas que, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), existe uma decisão ministerial sobre anticircumvention e um grupo informal sobre anticircumvention dedicados ao tema. E não é em vão que, após mais de dez anos de trabalho, ainda não se chegou a nenhuma conclusão, e o tema circumvention permanece um dos impasses da revisão do atual Acordo Antidumping (AAD) no contexto da Rodada Doha. Ressalte-se que o AAD nada diz sobre essas medidas que, na prática, podem estender o direito antidumping para outros produtos ou países. Tampouco a OMC deu o sinal verde para medidas anticircumvention. Todavia, mais de uma dezena de países prevêem, em suas legislações, mecanismos para coibir tal prática.

No Brasil, a Resolução nº 63 prevê a extensão dos direitos antidumping em todas as modalidades descritas acima. Nos casos de triangulação, a extensão dos direitos poderá ajudar vários setores e deverá reduzir tal prática. Afinal de contas, de nada vale todo o investimento e empenho envolvido em uma investigação antidumping se o mesmo produto passa a ser exportado via terceiro país sem pagar nenhum direito. Talvez até melhor que extensão fosse a expressão implementação dos direitos antidumping, visto que o direito seria mantido sobre o produto objeto da investigação seja ele exportado pelo país mencionado na determinação final ou via terceiro país.

Por outro lado, a pura e simples extensão dos direitos antidumping a produtos industrializados (a Resolução nº 63 não usa o termo montados) em outros países, a peças e componentes importados, bem como a produtos modificados inspira maior cuidado. Não se pode estender direitos antidumping a outros países e produtos sem a devida apuração de dumping, dano e nexo causal. Essa tem sido, pelo menos, a postura do Brasil desde o início das discussões sobre circumvention no antigo GATT na década de 80.

No primeiro caso (industrialização em terceiros países), a decisão de fabricação em terceiro país pode fazer parte de prática legítima de comércio. Mas como ainda não existe harmonização das regras de origem não preferenciais, sempre haverá o risco de utilização de critérios não uniformes para se determinar a origem de um produto. Por exemplo, como determinar o que pode ser considerado uma operação de industrialização para efeito do custo de manufatura? Tendo em vista que os custos de mão de obra e matérias-primas são geralmente mais baixos em países em desenvolvimento, esses terão maiores dificuldades para cumprir os requisitos de valor agregado mínimo de 25%.

No segundo caso (peças e componentes), surgem dúvidas quanto à representatividade da indústria doméstica. A mesma indústria afetada pelas importações do produto X também produz as peças Y e Z do produto X que alega estarem sendo importadas a preços de dumping? Cabe lembrar que o GATT já condenou a extensão de direitos antidumping, pela União Européia, a partes e componentes mediante cobrança de imposto quando da entrada em circulação do produto final industrializado no mercado comunitário. A mesma dificuldade reside na extensão de direitos a produtos modificados, cuja previsão, apesar de constar da Resolução nº 63, não está claramente contemplada no artigo 10-A da Lei nº 9.019. De qualquer maneira, modificações ao produto trazem à tona a extensa - e não necessariamente conclusiva - jurisprudência da OMC sobre similaridade. Surgem questões também acerca dos direitos originais: eventual mudança no fluxo de comércio (preços e volumes) no contexto de uma determinação de circumvention será suficiente para uma revisão administrativa dos direitos originais?

É muito tênue a divisão entre práticas legítimas de comércio não disciplinadas (e, portanto, não proibidas) pelo AAD e o limite da autoridade na extensão de direitos a outros produtos e países sob a justificativa de prática "insuficientemente motivada" ou "sem justificativa econômica". Aliás, essa tênue divisão é o motivo pelo qual os EUA insistem em introduzir uma cláusula no AAD para resolver a questão de uma vez por todas. Por esses motivos, seria prudente uma consulta pública sobre detalhes da regulamentação da Resolução nº 63 para que se refine a sua versão final e não se repitam alguns problemas já enfrentados por jurisdições que realizam investigações anticircumvention. É necessário que se estabeleça, no mínimo, um procedimento para que todas as partes se manifestem, o que daria maior garantia à autoridade investigadora de que ela não seria responsabilizada por eventual inobservância do AAD, ao mesmo tempo em que se protegeria a indústria doméstica de práticas que visam tão somente frustrar a aplicação de direitos antidumping.

(aspas)

 

Por : Rodrigo Pupo, advogado da área de comercio exterior de Veirano Advogados, mestre em direito internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em direito do comércio internacional pela Georgetown University (Washington, D.C.)

 

Fonte : Jornal "Valor Econômico", 23/09/2010

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