Hugo de Brito Machado
Em Direito Tributário a expressão sanções políticas corresponde a restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime especial de fiscalização, entre outras. Qualquer que seja a restrição que implique cerceamento da liberdade de exercer atividade lícita é inconstitucional, porque contraria o disposto nos artigos 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, do estatuto maior do país.
O Supremo Tribunal Federal sumulou sua jurisprudência no sentido de serem inconstitucionais as sanções políticas. A Súmula 70 diz que é inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo. Diz a Súmula 323 que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributo, e a 547 estabelece que não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
Não obstante inconstitucionais, as sanções políticas, que no Brasil remontam aos tempos da ditadura de Vargas, vêm se tornando a cada dia mais numerosas e arbitrárias, consubstanciando as mais diversas formas de restrições e direitos do contribuinte, como forma oblíqua de obrigá-lo ao pagamento de tributos, ou às vezes como forma de retaliação contra o contribuinte que vai a juízo pedir proteção contra cobranças ilegais.
São exemplos mais comuns de sanções políticas e apreensão de mercadorias sem que a presença física destas seja necessária para a comprovação do que o fisco aponta como ilícito; o denominado regime especial de fiscalização, a recusa de autorização para imprimir notas fiscais, a inscrição em cadastro de inadimplentes com as restrições daí decorrentes, a recusa de certidão negativa de débito quando não existe lançamento consumado contra o contribuinte, a suspensão e até o cancelamento da inscrição do contribuinte no respectivo cadastro, entre muitos outros.
Todas essas práticas são flagrantemente inconstitucionais, entre outras razões, porque: a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo art. 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal; e b) configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência do tributo é ou não legal.
A suspensão e o cancelamento da inscrição no cadastro fazendário implicam verdadeira proibição do exercício da atividade econômica pelo contribuinte. Nada, portanto, justifica tal providência, posto que o art. 5º, inciso XIII, da CF/88, coloca no altiplano dos direitos fundamentais a liberdade profissional, a dizer que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, enquanto o art. 170, parágrafo único, da Lei Maior, diz que é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo os casos previstos em lei.
No primeiro desses dispositivos consagra-se a liberdade de exercício profissional, e a única exigência possível, como condição para tal exercício, diz respeito à capacidade profissional. Assim, por exemplo, para exercer a atividade de médico, ou de advogado, é válida a exigência do diploma universitário, que atesta a respectiva capacitação profissional.
No segundo consagrada está a liberdade de exercício de atividade econômica. Mais ampla, tanto que não comporta exigência nenhuma, nem mesmo de capacitação, seja de que natureza for. A ressalva contida no final do dispositivo diz respeito a certas atividades que, por questão de segurança, fica a depender da autorização estatal, como acontece, por exemplo, com o fabrico e comercialização de determinadas armas e munições. Obviamente não seria razoável admitir-se a produção, ou o comércio, de metralhadoras, por exemplo, sem autorização e controle do estado.
A legislação de alguns estados, faculta a suspensão, e até o cancelamento, da inscrição no cadastro de contribuintes, como forma de punição. A legislação tributária do estado do Ceará, por exemplo, admite a suspensão das inscrições de contribuintes que praticarem determinadas infrações, que menciona, e até a cassação da inscrição, na hipótese de não resolução das pendências no prazo de 60 dias. (Decreto nº 24.569, de 31/7/97, artigos 101 a 103). A de Pernambuco, a seu turno, estabelece o cancelamento da inscrição como forma de punição das infrações que menciona, chegando ao cúmulo de colocar entre os casos de cancelamento outras hipóteses previstas em portaria do Secretário da Fazenda. (Decreto nº 14.876, de 12/3/91, artigo 77).
A legislação do Rio Grande do Sul estabelece tratamento curioso para o problema, determinando que o deferimento da inscrição como contribuinte desse imposto ‘‘fica condicionado à prestação de fiança idônea, cujo valor será equivalente ao imposto calculado sobre operações ou prestações estimadas para um período de 6 (seis) meses, caso o interessado, tendo sido autuado por falta de pagamento de impostos estaduais, tenha deixado de apresentar impugnação no prazo legal ou, se o fez, tenha sido julgada improcedente, estendendo-se o aqui disposto, no caso de sociedades comerciais, aos sócios ou diretores.’’ (art. 3º, do Regulamento aprovado pelo Decreto nº 37.699, de 26/8/97).
Estabelece, também, o regulamento gaúcho, que a garantia exigida como condição para inscrição do contribuinte ‘‘não ficará adstrita à fiança, podendo ser exigida garantia real, ou outra fidejussória’’, e mais, ‘‘deverá ser complementada sempre que exigida e, sempre que se tratar de garantia fidejussória, atualizada a cada 6 (seis) meses. (art. 3º, parágrafo único, alíneas ‘‘a’’ e ‘‘b’’).
Diz ainda o referido regulamento que a inscrição do contribuinte do ICMS poderá ser cancelada, entre outras hipóteses também inadmissíveis, se este não prestar a fiança exigida. Inscrição que somente poderá ser novamente concedida ‘‘se comprovado terem cessado as causas que determinaram o cancelamento e satisfeitas as obrigações dela decorrentes’’ (sic) art. 6º, inciso I, e seu parágrafo único).
Maior absurdo não pode haver, porque isto significa colocar como condição para o exercício da atividade econômica o pagamento do tributo.
A inscrição no cadastro de contribuintes não pode ser transformada em autorização para exercer a atividade econômica. Nem o seu cancelamento em forma de obrigar o contribuinte a cumprir seus deveres para com o estado. Mesmo o contribuinte mais renitente na prática de infrações à lei tributária não pode ser proibido de comerciar. Mesmo aquele que tenha sido condenado, no juízo criminal competente, por prática de crime de sonegação de tributos, tem o direito de continuar exercendo o comércio, porque a lei não comina aos que cometem esse crime a pena de proibição do exercício do comércio.
Aliás, mesmo a lei penal, lei ordinária federal posto que à União compete legislar em matéria penal, não pode cominar a pena de cancelamento da inscrição do contribuinte, pois estaria instituindo pena de caráter perpétuo, que a Constituição proíbe, (CF/88, art. 5º, inciso XLVII, alínea ‘‘b’’).
A ilicitude do não pagar os tributos devidos não exclui o direito de exercer a atividade econômica, que é direito fundamental. Atividade econômica lícita, é certo, mas a ilicitude do não pagar o tributo não faz ilícita a atividade geradora do dever tributário. Uma coisa é a ilicitude de certa atividade. Outra, bem diversa, a ilicitude consistente no descumprimento da obrigação tributária, principal ou acessória.
Apesar de flagrantemente inconstitucionais, todavia, as sanções políticas seguem sendo largamente praticadas, no mais das vezes por puro comodismo das autoridades da administração tributária, que nelas encontram meio fácil de fazer a cobrança de tributos. Tem sido freqüente, assim, a impetração de mandados de segurança para garantir aos contribuintes a prática de atividade econômica, livrando-os das restrições arbitrárias que as autoridades fazendárias teimam em lhes impor.
Ocorre que do deferimento do writ nenhuma conseqüência decorre, capaz de inibir tais práticas arbitrárias. Por isso proliferam, e se repetem até para o mesmo beneficiário da ordem judicial, que tem de ser repetida em todos os casos, gerando enorme encargo para o Judiciário.
O caminho para inibir as sanções políticas é a ação de indenização por perdas e danos, contra a entidade pública, com pedido de citação também da autoridade responsável pela ilegalidade, tudo com fundamento no art. 37 e seu § 6º, da vigente Constituição Federal. A sanção política, conforme o caso, pode causar dano moral, dano material, e lucros cessantes, tudo a comportar a respectiva indenização, desde que devidamente demonstrados.
Hugo de Brito Machado
Juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região e
Professor titular de Direito Tributário da Universidade Federal do Ceará
Extraído do site do jornal Correio Braziliense
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