RESUMO
O presente artigo visou analisar os aspectos constitucionais e legais dos procedimentos de fiscalização aduaneira da Alfândega do Brasil atinentes aos despachos de cargas com suspeita de fraude, especialmente no tocante à retenção das mercadorias durante o procedimento. Foram analisados tanto a doutrina quanto a jurisprudência correlatas. Pudemos concluir que a proibição da liberação com garantia de mercadorias no curso de Procedimentos Especiais Aduaneiros, ainda que em hipótese de fraude, conflita com o ordenamento e fere garantias das pessoas físicas e jurídicas.
Palavras-chave: alfândega brasileira, procedimento de fiscalização aduaneira; suspeita de fraude; retenção de mercadorias.
1. O PROCEDIMENTO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO
A Medida Provisória 2158-35/01, é ainda a base para o procedimento que, visando combater a atuação das importadoras – conhecidas por Tradings – como fachada a sonegadores do Fisco, assim dispôs:
Art. 68. Quando houver indícios de infração punível com a pena de perdimento, a mercadoria importada será retida pela Secretaria da Receita Federal, até que seja concluído o correspondente procedimento de fiscalização.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplicar-se-á na forma a ser disciplinada pela Secretaria da Receita Federal, que disporá sobre o prazo máximo de retenção, bem assim as situações em que as mercadorias poderão ser entregues ao importador, antes da conclusão do procedimento de fiscalização, mediante a adoção das necessárias medidas de cautela fiscal.
...Art. 80. A Secretaria da Receita Federal poderá:
I - estabelecer requisitos e condições para a atuação de pessoa jurídica importadora por conta e ordem de terceiro; e
II - exigir prestação de garantia como condição para a entrega de mercadorias, quando o valor das importações for incompatível com o capital social ou o patrimônio líquido do importador ou do adquirente.
Para instrumentalizar a fiscalização a Secretaria da Receita Federal editou em 25 de setembro de 2002 a Instrução Normativa de nº206 que previu a figura de um Procedimento Especial de Controle Aduaneiro, vejamos:
Art. 65. A mercadoria introduzida no País sob fundada suspeita de irregularidade punível com a pena de perdimento ou que impeça seu consumo ou comercialização no País, será submetida aos procedimentos especiais de controle aduaneiro estabelecidos neste título.
Parágrafo único. A mercadoria submetida aos procedimentos especiais a que se refere este artigo ficará retida até a conclusão do correspondente procedimento de fiscalização, independentemente de encontrar-se em despacho aduaneiro de importação ou desembaraçada.
...Art. 69. As mercadorias ficarão retidas pela fiscalização pelo prazo máximo de noventa dias, prorrogável por igual período, em situações devidamente justificadas.
Parágrafo único. Afastada a hipótese de fraude e havendo dúvidas quanto à exatidão do valor aduaneiro declarado, a mercadoria poderá ser desembaraçada e entregue mediante a prestação de garantia, determinada pelo titular da unidade da SRF ou por servidor por ele designado, nos termos da norma específica. (negritamos)
Depois, já em 21 de outubro de 2002, a Instrução Normativa de nº228 foi publicada, regulando o agora denominado Procedimento Especial de Fiscalização e fazendo a seguinte proibição:
Art. 7º Enquanto não comprovada a origem lícita, a disponibilidade e a efetiva transferência, se for o caso, dos recursos necessários à prática das operações, bem assim a condição de real adquirente ou vendedor, o desembaraço ou a entrega das mercadorias na importação fica condicionado à prestação de garantia, até a conclusão do procedimento especial.
§ 1º A garantia será equivalente ao preço da mercadoria apurado com base nos procedimentos previstos no art. 88 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, acrescido do frete e seguro internacional, e será fixada pela unidade de despacho no prazo de dez dias úteis contado da data da instauração do procedimento especial. (negritamos)
Todos os institutos já mencionados foram referendados pelo Decreto 6759 de 5 de fevereiro de 2009, vejamos:
Art. 794. Quando houver indícios de infração punível com a pena de perdimento, a mercadoria importada será retida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, até que seja concluído o correspondente procedimento de fiscalização (Medida Provisória no 2.158-35, de 2001, art. 68, caput).
Parágrafo único. O disposto no caput será aplicado na forma disciplinada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, que disporá sobre o prazo máximo de retenção, bem como sobre as situações em que as mercadorias poderão ser entregues ao importador, antes da conclusão do procedimento de fiscalização, mediante a adoção das adequadas medidas de cautela fiscal (Medida Provisória no 2.158-35, de 2001, art. 68, parágrafo único).
1.2. Realização dos Procedimentos
Nas Alfândegas dos principais portos e aeroportos do país foram criados órgãos de fiscalização denominados SAPEA – Seção de Procedimentos Especiais Aduaneiros, cuja finalidade precípua é realizar combate às fraudes aduaneiras.
A seção é responsável por fazer o “gerenciamento de risco”, coordenando atividades de prevenção e combate às fraudes em matéria aduaneira e identificando e avaliando pessoas físicas ou jurídicas que participem de atividades aduaneiras – função de inteligência – bem como lhe cabe realizar o Procedimento Especial Aduaneiro, ou seja, análise documental, conferência de cargas e demais apurações destinadas a “verificar elementos indiciários de fraude nos despachos aduaneiros”.
Ficam sujeitas às apurações por meio do Procedimento Especial as condutas suspeitas de irregularidades puníveis com pena de perdimento, a mais severa prevista às infrações à legislação aduaneira.
São as situações consideradas, conforme o juízo do Auditor da Receita Federal, suspeitas de falsa classificação fiscal, suspeitas de falsa informação de preço, suspeitas de infração de propriedade industrial, suspeita de não atendimento de norma técnica, suspeita de interposição fraudulenta de terceiro, entre outras.
Os trabalhos de apuração, pela forma que a Receita dá ao chamado Procedimento Especial, não se desenrolam em uma sequência de atos acessíveis às pessoas investigadas, mas, ao contrário, tramita em sigilo.
O Procedimento transcorre de forma unilateral, em procedimento inquisitorial, ou seja, sem a participação do investigado na produção e coleta das provas.
A empresa ou pessoa natural recebe uma singela intimação para apresentar documentos no SAPEA da Alfândega onde estiver sua carga, sendo notificada então da instauração do Procedimento.
Não se dá ao investigado acesso aos documentos, laudos, relatórios ou declarações, muito menos se permite que dos trabalhos da fiscalização sejam extraídas cópias reprográficas, pois, como informam os Auditores, o caráter dos trabalhos é sigiloso e não há ainda um Processo Fiscal.
Nem mesmo às pessoas investigadas ou seu advogados constituídos são prestadas informações sobre o andamento das apurações, limitando-se os Fiscais a solicitar que a parte aguarde a conclusão dos trabalhos que se dará com a notificação final, geralmente pelo auto de infração e aplicação de penalidade.
Vale lembrar que o atendimento das intimações, para prestação de informações acerca da gestão das empresas, dos negócios e contratos celebrados para aquisição das mercadorias, apresentação de documentos da sociedade, dos sócios e, não raro, das empresas estrangeiras, é de cumprimento obrigatório, inclusive no prazo fixado pelo Auditor da Receita Federal, impondo-se multa no valor de R$5.000,00 por descumprimento.
Durante este período os Fiscais solicitam cópias e verificam os estatutos de todas as empresas envolvidas no despacho sob análise (alterações de contratos sociais, integralização do capital subscrito, v.g.), as informações sobre as pessoas dos sócios e representantes legais das empresas, histórico das empresas no comércio internacional (freqüência das importações/exportações, valor dos negócios, características das cargas, v.g.), livros fiscais, recolhimento de tributos nas operações no mercado interno, capacidade econômica das empresas e dos sócios, destinação/origem das mercadorias, valor das mercadorias, e muito mais.
Está entre as medidas apuratórias a verificação de dados, inclusive com a previsão de quebra de sigilo bancário e fiscal não só das pessoas envolvidas no negócio jurídico relativo ao despacho aduaneiro analisado, mas de terceiras pessoas que, a critério do Agente do Fisco, importem nas apurações.
Muitas vezes, os Agentes do SAPEA fazem lançar no sistema interno de informações da fiscalização observações acerca das empresas investigadas, chamadas de “note”. Tais medidas, bem como a proibição de trânsito aduaneiro que impede a transferência das cargas para outra unidade de Alfândega no território nacional, podem significar a retenção de todas as cargas de uma importadora, em qualquer porto ou aeroporto do País.
Tudo isto baseado em uma mera suspeita, ao arbítrio do Agente do Fisco que pode sujeitar ao Procedimento Especial, inclusive, a importação por ele considerada atentatória à moral e aos bons costumes! (INSRF 206/2002, inciso IV, artigo 66)
2. O PROCEDIMENTO E O ORDENAMENTO JURÍDICO
2.1. Características da Atuação do Fisco
Por particularidade própria de sua formação, geralmente oriundo dos cursos de ciências contábeis, economia ou afins, o agente do Fisco detém visão tendente a um pragmatismo estreitante e não se dá a discutir a adequação sistêmica das normas utilizáveis em seus afazeres.
Não é comum encontrar, no âmbito da fiscalização tributária, aqueles que se arrisquem a questionar as leis tributárias e seus regulamentos, pois estariam prejudicando, seriamente, seu futuro na instituição ao se desviarem dos ditames de seus superiores hierárquicos, editores de tais normas.
À bem da verdade, quando a norma instrumental exigir interpretação ou integração, dos agentes do Fisco não se deve esperar alguma que se distancie dos interesses econômicos da Fazenda Nacional.
No tocante à imparcialidade do agente do Fisco na aplicação das normas tributárias merece citação o festejado mestre Kiyoshi Harada (HARADA, 1998, pág. 321):
Nem toda a legislação infraconstitucional sobre a matéria é compatível com a inovação trazida pela Carta Política de 1988 que, pelos incisos LIV e LV, do art. 5º, institui, respectivamente, e de forma expressa, o princípio do devido processo legal e os princípios do contraditório e da ampla defesa, no âmbito do procedimento administrativo.
É que, se os órgãos administrativos julgadores estiverem subordinados aos órgãos fiscalizadores e arrecadatórios de tributos, por mais que se pregue a teoria da insubmissão do agente público, investido na função de decidir, ao princípio da hierarquia, não há como deixar de reconhecer a perda de sua autonomia, mesmo porque, sua designação para o posto, bem como sua permanência, estará sempre na dependência de avaliação pelo escalão superior. (negritamos)
A eficiência de um ARF ou mesmo de um Setor da Fiscalização se mede pela quantidade de autuações e pelo volume de divisas arrecadadas.
Seria de demasiada candura presumir que na aplicação de normas tributárias os representantes do Fisco venham a atuar com moderação, temperando os interesses arrecadatórios do Estado com os direitos e garantias dos contribuintes.
É da natureza da função que exercem a busca pela denominada eficiência administrativa que, segundo Hugo de Brito (MACHADO, 2008, pág. 56), “em matéria tributária consiste na realização da atividade de tributação de forma a propiciar o máximo resultado, vale dizer, a maior arrecadação”. (negritamos)
Todavia, o distinto autor lembra que este atuar não deve ferir o bem comum e que a norma é instrumento de realização deste fim “com o mínimo de sacrifício para os contribuintes”. Assim, o agir do Fisco deve estar balizado nos “demais princípios jurídicos, em especial nos princípios da legalidade e da isonomia”.
Tais limites ao poder de tributar existem porque nas relações de tributação “se contrapõe de um lado o interesse do Estado enquanto pessoa jurídica de Direito público, arrecadadora de tributos, e do outro o interesse do contribuinte” e, por isto, “não é razoável admitir que o Estado está atuando na defesa do interesse público” (Machado, 2008, pág. 76).
O Estado, quando Fisco, age não como protetor de todos os seus administrados, mas se opondo às pretensões destes como parte, opondo seus interesses, não raramente, contra todo um segmento da sociedade.
2.2. O Imperativo do Due Process of Law
Previsão constitucional insculpida no artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal, o princípio do Devido Processo Legal, obrigatório também na esfera administrativa, garante que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Assim, por clara imposição da Carta Política vigente, cujo especial destinatário é o legislador, não se pode autorizar, ainda que por meio de lei, a violação a direito de propriedade do indivíduo sem lhe assegurar o direito de defesa.
Neste sentido, qualquer ato do Poder Público que, mesmo provisoriamente, afaste de qualquer pessoa – natural ou jurídica e não somente o cidadão brasileiro – o seu direito à propriedade, deverá ser realizado em um processo, onde a ampla defesa poderá ser exercida pelos meios e recursos que dão forma ao contraditório.
Por este princípio não se pode consentir com a retenção de mercadorias do administrado em mero procedimento – sigiloso e unilateral – pois inconstitucional.
E é oportuno que aqui se invoque o Princípio da Proporcionalidade, corolário do Direito Administrativo que limita a atuação do Estado, protegendo os direitos fundamentais da desarrazoada ação administrativa.
Pois, conforme ensina Alexandre de Moraes, (MORAES, 2003, pág. 369) “o que se exige do Poder Público é uma coerência lógica nas decisões e medidas administrativas e legislativas, bem como na aplicação de medidas restritivas e sancionadoras”, já que a Administração não pode agir de forma exagerada, sem prudência ao impor obrigação ou restringir direito, aviltando o equilíbrio entre os interesses do Estado e os dos particulares.
E cita o Ministro Gilmar Mendes, que agora copiamos pelo brilhantismo da explanação:
O requisito da necessidade ou da exigibilidade (Notwendigkeit oder Endforderichkelt) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado. (IBID.) (negritamos)
É, portanto, um dever da Administração agir, sempre, de forma adequada ao fim que busca e, principalmente, utilizando-se de meios que não signifiquem prejuízo de grandes proporções aos administrados.
Claramente, a privação de bens ainda no curso de procedimento especial aduaneiro é medida preparatória da aplicação da pena de perdimento de mercadoria, a mais grave de todo o ordenamento tributário.
E, a se considerar o decurso do longo prazo do procedimento reveste-se de verdadeira antecipação da sanção.
Vejamos que a autora Vera Lúcia F. Ponciano (PONCIANO, 2008, pág. 427) afirmou: “é preciso que a autoridade decline expressamente os motivos da fundada suspeita para início do procedimento, uma vez que a retenção das mercadorias constitui ônus excessivo para as empresas”. (negritamos)
É mesmo deveras onerosa a medida, especialmente por que, no decurso de até meio exercício fiscal (180 dias), a retenção de mercadorias faz, especialmente às empresas importadoras, inviabilizar a própria atividade empresarial, impondo aos investigados prejuízos de monta decorrentes da falta de insumos ou de maquinários necessários à produção, indisponibilidade de estoque para entrega de mercadorias, penalização civil por descumprimento de contratos, além da quebra do fluxo de caixa, atraso da folha de pagamento, impontualidade perante os fornecedores e prestadores de serviço, a priori.
Na realidade da economia brasileira, com tamanha concorrência e com tanta dificuldade à administração das empresas, em um mercado onde o custo do capital é um dos mais caros do mundo, é seguro afirmar que uma empresa que passe meio ano com seus bens retidos na Alfândega, terá seu futuro seriamente ameaçado.
Há ainda o reflexo da dimensão material do princípio, denominado substantive due process of law, que, nas palavras do ministro Celso de Mello, também citado por Moraes (Op. Cit., pág. 370), “reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva”, sendo que o Estado “não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando com seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção”. (Pleno do STF – Adin. nº1.158/AM) (negritamos)
Por este indelével aspecto do princípio constitucional, nenhuma lei poderá criar obrigações exageradas, desproporcionais aos fins juridicamente aceitáveis à Administração Pública, prevenindo assim eventuais desvios e abusos dos mandatários do Poder.
2.3. Garantia da Reserva Legal
A edição de normas infra-legais, tais como Decretos, Resoluções, Instruções Normativas e Portarias se fundamenta no denominado Poder Regulamentar da Administração, que tem a função de dar fiel execução às leis.
Esta limitação, gravada no inciso IV do art. 84 da Carta Magna, conduz o Presidente da República – ou o seu representante – que “não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos e obrigações, por ser função do Poder Legislativo. Assim, o regulamento não poderá alterar disposição legal, e tampouco criar obrigações diversas das previstas em disposição legislativa” (MORAES, 2003, pág. 1234).
Neste sentido, “o exercício de competência fiscalizadora por órgão da Administração Pública está vinculado aos limites da lei outorgante. Essa lei deve ser considerada não apenas por sua natureza material, mas também formal, em interpretação estrita, eis que se trata de norma limitadora de direitos e disciplinadora de atividades, não podendo ser substituída por resoluções ou outros atos análogos” (TRF4 – 1ª T. REO nº 89.04.01351/RS – Rel. Rubens R. Hadad Viana). (IBID, pág. 198) (negritamos)
Vejamos o que consta do Código Tributário Nacional:
Art. 99. O conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta Lei.
Reitera o principio da Reserva Legal o Decreto nº37 de 1966, base da atuação da Alfândega, nestes termos:
Art.94 - Constitui infração toda ação ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe inobservância, por parte da pessoa natural ou jurídica, de norma estabelecida neste Decreto-Lei, no seu regulamento ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a completá-los.
§ 1º - O regulamento e demais atos administrativos não poderão estabelecer ou disciplinar obrigação, nem definir infração ou cominar penalidade que não estejam autorizadas ou previstas em lei.
É isto que resta ainda da leitura do inciso V, do art. 97 do CTN que reserva exclusivamente à lei em sentido formal, “a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas”.
3. ANÁLISE SISTÊMICA DA RETENÇÃO
Ora, se não pode o regulamento criar obrigação, a contrario sensu, não pode restringir liberdade, não pode limitar direito previsto em Lei!
Pois é exatamente isto que faz a INSRF nº206/02, no art. 69, § único, quando extrapola o comando legal da já citada MP 2158-35/01, a qual não deu tratamento gravoso a casos de mercadorias com suspeita de fraude para proibir sua liberação mediante garantia.
A norma que previu a retenção cautelar para apuração de infração punível com pena de perdimento, abarcou todas as possíveis infrações, inclusive aquelas que a Receita chama de “fraude”, e outorgou à SRF disciplinar as situações para entrega com garantia, sem diferenciar tratamento aos casos em apuração.
É claro que cabia ao regulamento dispor sobre os requisitos formais para a pretensa liberação com garantia, tais como lavratura de termos, valoração e modo de garantia, documentação exigível e outros.
Mas tanto quanto a MP 2158-35/01, o Decreto 6759/09 não outorgou à SRF o poder de restringir o direito à liberação com garantia.
Ao contrário, assegurando o direito à liberação com garantia, atribuiu ao órgão do Ministério da Fazenda o dever de disciplinar o seu exercício, não podendo a norma complementar da Medida Provisória restringir o direito nela previsto, negando-lhe a esta ou aquela situação.
Ademais, nem mesmo a medida Presidencial estaria apta a macular a garantia constitucional do Direito de Propriedade combinado com o Devido Processo Legal, pois que, enquanto ato do Poder Executivo está inteiramente submetido às leis e, consequentemente, à constituição.
O Poder Judiciário precisa estar atento para o fato de que a Administração Tributária, na ânsia de nutrir de recursos a dispendiosa e inchada máquina governamental, vem criando ou ressuscitando normas com contornos ditatoriais.
Pois, como fez Folloni (FOLLONI, 2006, pág. 93), indaga-se: “subsistiria essa prática autoritária de apreender previamente produtos sem o devido processo constitucional, de julgar como bem entende a regularidade da apreensão e em instância única em um Estado Democrático de Direito?”.
Aqui exatamente é que me imponho pedir vênia para discordar da brilhante Desembargadora Federal Vera Lúcia (PONCIANO, 2008, pág. 428), pois que, se a medida de retenção de mercadorias, como asseverou a autora, “tem natureza cautelar administrativa, com o objetivo de garantir eventual aplicação da sanção final (pena de perdimento)” a liberação das mercadorias não oferece risco de frustração de aplicação da pena diante de garantia do valor dos bens.
Como consta da ementa da 3ª Turma do TRF3 nos autos da Apelação em Mandado de Segurança 2001.61.04.006153-4 (Rel. Juíza Fed. Conv. Eliana Marcelo, 14.2.2007):
A apreensão de bens pela autoridade é justificável em determinadas situações e por prazo determinado, desde que imprescindíveis para o seu posterior desembaraço, como, por exemplo, para serem periciadas, destinadas a uma correta valoração ou, ainda, no caso de conhecimento de fato ou da existência de indícios que requeiram a necessidade de sua verificação. (http://www.trf3.jus.br/acordao/verrtf2.php?rtfa=63308284381390, Acesso em:6.4.2010.)
Não há, portanto, fundamento lógico razoável para impedir que os bens sejam entregues ao seu importador, que, após depositar o valor da garantia ou assegurar o seu pagamento, continuará respondendo às intimações da fiscalização e prestando todas as informações a que esteja obrigado, submetendo-se ao processo cabível e à eventual sanção que lhe seja aplicável ao final.
E, não se esta defendendo a liberação, ainda que com garantia, de produtos com vícios intrínsecos!
Necessária é a prévia Verificação Aduaneira, que constatará não só a regularidade dos valores atribuídos à carga, mas também a inexistência de riscos dos produtos à Ordem de Consumo (prazo de validade, normas de segurança do INMETRO e outras), cumprimento das exigências de outros órgãos quando for o caso (licenças prévias da Vigilância Sanitária, Ministério do Exército, p.ex.) e ainda não serem produtos proibidos (entorpecentes, descartes radioativos) ou falsificados.
Este, aliás, é o claro alcance que se deve extrair do texto da MP 2158-35/01 e agora do Decreto 6759/09 onde constam “as situações em que as mercadorias poderão ser entregues ao importador”!
As normas citadas deram à Secretaria da Receita Federal a atribuição de regular a liberação, visando resguardar tanto os interesses fazendários quanto a regularidade perante outros interesses coletivos, como a saúde pública, a livre concorrência, segurança pública e outros.
Mas a MP 2158-35/01 não dá à autoridade administrativa, como não poderia fazer no sistema prestigiador da lex stricta, o poder de limitar garantias constitucionais.
Vale citar ainda o art. 2º da lei 9.784/99, Lei Geral do Processo Administrativo, onde consta:
A administração Publica obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I – atuação conforme a lei e o Direito; (negritamos)
Como aponta André Folloni (Op. Cit., pág. 95), aí está insculpido o Princípio da Juridicidade da Administração que impõe a aplicação da lei de acordo com todo o ordenamento vigente e não com base na interpretação literal da norma.
É importante lembrar ainda que, havendo necessidade para a apreensão do real conteúdo do texto legal, conforme preconiza o art.112 do CTN, a lei tributária – somente lei em sentido formal – que define infrações ou lhe comina penalidades interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado.
Justamente agora se mostra de relevo trazer à luz a revogada Portaria nº30 de 25.02.2005 do MF que regulava em detalhes as funções dos SAPEAs – já sob a égide da MP 2158-35/2001 e das IN nº206 e nº228 de 2002 – pois naquele ato da autoridade administrativa conviviam harmonicamente, no artigo 209, as competências para “combate às fraudes aduaneiras”, “retenção e apreensão de mercadorias” e “exigência de garantias” (incisos I, III e V).
Isto bem revela que o texto da MP 2158-35/01, repetido pelo Dec.6759/09, não impede a liberação de mercadorias em caso de apuração de fraude.
Sendo o combate à fraude a única matéria de que tratam os SAPEAs, não teria sentido prever a exigência de garantia para os casos de sua competência não fosse a liberação das mercadorias um direito do importador.
Claro restou, segundo o próprio Ministério da Fazenda através de portaria de 2005, que cabe a liberação de mercadorias mediante garantia, a ser fixada pelos próprios SAPEAs, nos procedimentos para apuração de fraudes aduaneiras.
Podemos assim afirmar que a restrição “afastada a hipótese de fraude” do artigo 69 da IN 206/02 não foi acidentalmente omitida na IN 228/02, posterior àquela e que disciplina os procedimentos de verificação das operações de comércio exterior e “combate à interposição fraudulenta de pessoas”.
Ora, se a IN 228/02, ao disciplinar a apuração de interposição fraudulenta permite a liberação com garantia – artigo 7º e parágrafos – não persiste a restrição da IN 206/02, pois que o ulterior ato normativo implicitamente revogou-a!
4. CONCLUSÃO
Como resultado da analise aqui realizada, em esforço honesto de contextualização da proibição da liberação de mercadorias apreendidas no curso de procedimento para apuração de despacho aduaneiro com suspeita de fraude, podemos, seguramente, afirmar que tal instituto é ilegal.
Como demonstrado, a IN nº206/02 da SRF, em seu art.69, § único, inadvertidamente restringe o direito de oferecimento de garantia previsto nas normas reguladoras de hierarquia superior em caso de típica insubordinação executiva.
A previsão do referido ato da Secretária da Receita amplia limitação ao direito à propriedade e ao devido processo legal, criando mecanismo opressivo e desnecessariamente oneroso ao administrado (contribuintes ou responsáveis), em flagrante ofensa à razoabilidade dos atos administrativos.
A medida de retenção prévia de mercadoria, aceitável apenas em situações excepcionais e justificadas em ato público e devidamente motivado, não pode persistir em mero procedimento, impondo a imediata instauração de processo administrativo.
A liberação das mercadorias mediante garantia, mesmo em caso de suspeita de fraude, é direito público subjetivo do administrado e à Receita Federal cabe, em prazo razoável, – dez dias úteis nos termos do §1º do art. 7º da IN nº228/02 – realizar a verificação, a valoração da carga e a fixação da caução.
Esta leitura exegética não é apenas resultado de dedicada interpretação e integração da legislação tributária, mas também protege, equilibradamente, tanto os direitos dos administrados quanto os interesses da Fazenda Nacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOLLONI, A. P. A hermenêutica histórica e o processo de dano ao erário: em homenagem a José Souto Maior Borges. Raízes Jurídicas, Curitiba, p. 77-100, jan/jun 2006.
HARADA, K. Direito Financeiro e Tributário. 4a. ed. São Paulo: Atlas, 1998.
MACHADO, H. D. B. Processo Administrativo Tributário: Eficiência e Direitos Fundamentais do Contribuinte. In: CAMPOS, M. (COORD.), Direito Processual Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
MORAES, A. D. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 3a Edição. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
PONCIANO, V. L. F. Sanção Aplicável ao Subfaturamento na Importação: Pena de Perdimento ou Multa? In: VAZ, P. A. B.; PAULSEN, L.; (ORGANIZ.) Curso Modular de Direito Tributário. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 419/445.
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