Em uma conversa recente, um dos livreiros mais bem-sucedidos do país, num misto de desencanto e bom-humor, desabafou: "Se há lei, já é obsoleta". O assunto era o terreno pantanoso em que se encontra a legislação brasileira sobre os meios digitais, que a todo instante transcendem suas fronteiras. Previsto para ser analisado na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, na terça-feira, o projeto de lei que pretende livrar de impostos os livros eletrônicos é o novo personagem de um enredo polêmico.
O projeto do senador Acir Gurgacz (PDT-RO) propõe que leitores eletrônicos - Kindle ou qualquer outro livro em formato digital, magnético ou ótico que tenha como função primordial ou exclusiva a leitura - sejam equiparados a livros físicos e desfrutem da mesma imunidade tributária. A expectativa é que o preço desses "gadgets" seja reduzido em até 60%.
De fato, a legislação atual é anacrônica e não dá conta dos avanços da era hipermidiática. No artigo 2º da Lei nº 10.753, o livro é definido como "publicação de textos escritos em fichas ou folhas, não periódica, grampeada, colada ou costurada, em volume cartonado, encadernado ou em brochura, em capas avulsas, em qualquer forma e acabamento".
Hoje, a lei atribui isenção apenas a livros digitais se destinados a pessoas com deficiência visual. Quando foi decretada, seus formuladores certamente não projetavam que o livro pudesse ser algo muito diferente do formato impresso nem que novas modalidades ganhariam o peso que têm. Apesar de ainda tímido no Brasil, o faturamento com a venda de livros digitais nos EUA superou em mais de 30% o dos impressos.
O projeto de lei de Gurgacz tem caráter positivo para o consumidor final, já que facilita o acesso ao livro digital. Mesmo assim, as reações do setor livreiro variaram entre comentários frios e críticas inflamadas, especialmente quanto à eficácia do projeto e suas imprecisões.
Se, por um lado, a redução de impostos dos livros eletrônicos se encaixa na proposta da Lei do Livro de difundir o conhecimento e propagar a informação e a cultura, por outro, há discordância conceitual sobre o que é livro na era digital. Como está escrito no projeto proposto por Gurgacz, a definição é ampliada, mas ainda dá margem a dúvidas. Os críticos ponderam que as brechas podem sinalizar um princípio equivocado, confundindo o conteúdo com o suporte.
As manifestações fazem sentido. O essencial seria proteger e difundir o conhecimento intrínseco à obra do escritor, não apenas a mídia. Seguem a lógica de que o meio não é a mensagem. Com a palavra, o livreiro: "Não estamos distantes do dia em que o livro de receita estará disponível em micro-ondas e geladeiras. A linha branca será livro?"
A preocupação não é questão semântica, especialmente em um ambiente de ânimos exaltados, quando o tema é a tributação de conteúdos digitais e, por conseguinte, o estímulo que o Brasil pretende conceder à produção e à difusão intelectual. O ponto é a necessidade de separar o joio do trigo, sobretudo numa era pautada pelo signo da "destruição criativa".
O conteúdo digital, dizem editores, advogados e livreiros, deveria ser protegido por uma lei e os equipamentos, por outra, como a de informática. Um exemplo seria a "Lei do Bem", que acaba de enquadrar os tablets produzidos no Brasil.
Gurgacz avisa que fará emendas no texto aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, no mês passado, para esclarecer que tanto o conteúdo do livro digital quanto os tablets importados - outra polêmica - devem ser beneficiados pela imunidade. Dirimir dúvidas do projeto é mesmo fundamental.
O nó da questão hoje é que a Constituição de 1988 garante imunidade de impostos a livros físicos, mas o conteúdo digital não se enquadra nessa definição. A imprecisão da norma dificulta o isolamento do conteúdo e leva a pretensões tributárias distintas - todas avaliam que o único traço de aproximação entre livro físico e livro eletrônico é o conteúdo, "mas ter conteúdo de livro não significa ser livro". As considerações sobre o tema são vastas, mas comportam, entre outros aspectos, a possibilidade de o conteúdo digital ser um produto multimídia, não apenas com a linguagem escrita.
Para alguns especialistas, a comercialização de conteúdo digital é um serviço, o que exigiria a cobrança de Imposto Sobre Serviço (ISS) pelos municípios. Outros defendem ser o conteúdo um software, sujeito ao regime jurídico aplicável aos direitos autorais e, portanto, fora do campo de incidência do ISS. Também se discute se haveria a incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na operação de venda da mídia eletrônica gravada com conteúdo idêntico ao do livro em papel, explica Maria Eugênia Kanazawa, do escritório Trench, Rossi e Watanabe.
Há ainda uma terceira via: advogados têm recorrido ao Judiciário sob a alegação de que a imunidade constitucional aplica-se também aos livros digitais, como observa Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas. A explicação estaria no fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) já ter definido que a finalidade de imunidade constitucional seria "evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação". O mesmo princípio poderia aplicar-se aos livros digitais. "Mas, sem previsão em lei, cada interessado teria de recorrer", diz Lemos.
Seja qual for o desfecho desse projeto, há a necessidade de se pensar sobre outras exposições de risco da indústria do livro. Para que o setor não repita os erros da indústria fonográfica, dilacerada pela pirataria, Lemos sugere que o preço do conteúdo do livro digital seja bem desenhado. Como o arquivo de livro tem cerca de 1,5 megabyte e é menor do que um arquivo de música em MP3, ele pode ser rapidamente enviado por e-mail. Nesse caso, o custo de reprodução do conteúdo adicional seria próximo de zero.
A melhor forma de combater a pirataria, observa Lemos, é oferecer livros digitais de forma conveniente e a preço compatível com o nível de renda do país. Talvez só isso não seja o suficiente. Também seria importante ampliar o catálogo de livros digitais disponíveis em português e tornar os conteúdos abertos em vários padrões, uma discussão que não é só brasileira.
Mais atentos, empresários e legisladores podem, com certeza, construir uma história com um final mais feliz para as letras.
(aspas)
Por : Robinson Borges, editor de Cultura Jornal “Valor Econômico”, 09/06/2011
O projeto do senador Acir Gurgacz (PDT-RO) propõe que leitores eletrônicos - Kindle ou qualquer outro livro em formato digital, magnético ou ótico que tenha como função primordial ou exclusiva a leitura - sejam equiparados a livros físicos e desfrutem da mesma imunidade tributária. A expectativa é que o preço desses "gadgets" seja reduzido em até 60%.
De fato, a legislação atual é anacrônica e não dá conta dos avanços da era hipermidiática. No artigo 2º da Lei nº 10.753, o livro é definido como "publicação de textos escritos em fichas ou folhas, não periódica, grampeada, colada ou costurada, em volume cartonado, encadernado ou em brochura, em capas avulsas, em qualquer forma e acabamento".
Hoje, a lei atribui isenção apenas a livros digitais se destinados a pessoas com deficiência visual. Quando foi decretada, seus formuladores certamente não projetavam que o livro pudesse ser algo muito diferente do formato impresso nem que novas modalidades ganhariam o peso que têm. Apesar de ainda tímido no Brasil, o faturamento com a venda de livros digitais nos EUA superou em mais de 30% o dos impressos.
O projeto de lei de Gurgacz tem caráter positivo para o consumidor final, já que facilita o acesso ao livro digital. Mesmo assim, as reações do setor livreiro variaram entre comentários frios e críticas inflamadas, especialmente quanto à eficácia do projeto e suas imprecisões.
Se, por um lado, a redução de impostos dos livros eletrônicos se encaixa na proposta da Lei do Livro de difundir o conhecimento e propagar a informação e a cultura, por outro, há discordância conceitual sobre o que é livro na era digital. Como está escrito no projeto proposto por Gurgacz, a definição é ampliada, mas ainda dá margem a dúvidas. Os críticos ponderam que as brechas podem sinalizar um princípio equivocado, confundindo o conteúdo com o suporte.
As manifestações fazem sentido. O essencial seria proteger e difundir o conhecimento intrínseco à obra do escritor, não apenas a mídia. Seguem a lógica de que o meio não é a mensagem. Com a palavra, o livreiro: "Não estamos distantes do dia em que o livro de receita estará disponível em micro-ondas e geladeiras. A linha branca será livro?"
A preocupação não é questão semântica, especialmente em um ambiente de ânimos exaltados, quando o tema é a tributação de conteúdos digitais e, por conseguinte, o estímulo que o Brasil pretende conceder à produção e à difusão intelectual. O ponto é a necessidade de separar o joio do trigo, sobretudo numa era pautada pelo signo da "destruição criativa".
O conteúdo digital, dizem editores, advogados e livreiros, deveria ser protegido por uma lei e os equipamentos, por outra, como a de informática. Um exemplo seria a "Lei do Bem", que acaba de enquadrar os tablets produzidos no Brasil.
Gurgacz avisa que fará emendas no texto aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, no mês passado, para esclarecer que tanto o conteúdo do livro digital quanto os tablets importados - outra polêmica - devem ser beneficiados pela imunidade. Dirimir dúvidas do projeto é mesmo fundamental.
O nó da questão hoje é que a Constituição de 1988 garante imunidade de impostos a livros físicos, mas o conteúdo digital não se enquadra nessa definição. A imprecisão da norma dificulta o isolamento do conteúdo e leva a pretensões tributárias distintas - todas avaliam que o único traço de aproximação entre livro físico e livro eletrônico é o conteúdo, "mas ter conteúdo de livro não significa ser livro". As considerações sobre o tema são vastas, mas comportam, entre outros aspectos, a possibilidade de o conteúdo digital ser um produto multimídia, não apenas com a linguagem escrita.
Para alguns especialistas, a comercialização de conteúdo digital é um serviço, o que exigiria a cobrança de Imposto Sobre Serviço (ISS) pelos municípios. Outros defendem ser o conteúdo um software, sujeito ao regime jurídico aplicável aos direitos autorais e, portanto, fora do campo de incidência do ISS. Também se discute se haveria a incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na operação de venda da mídia eletrônica gravada com conteúdo idêntico ao do livro em papel, explica Maria Eugênia Kanazawa, do escritório Trench, Rossi e Watanabe.
Há ainda uma terceira via: advogados têm recorrido ao Judiciário sob a alegação de que a imunidade constitucional aplica-se também aos livros digitais, como observa Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas. A explicação estaria no fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) já ter definido que a finalidade de imunidade constitucional seria "evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação". O mesmo princípio poderia aplicar-se aos livros digitais. "Mas, sem previsão em lei, cada interessado teria de recorrer", diz Lemos.
Seja qual for o desfecho desse projeto, há a necessidade de se pensar sobre outras exposições de risco da indústria do livro. Para que o setor não repita os erros da indústria fonográfica, dilacerada pela pirataria, Lemos sugere que o preço do conteúdo do livro digital seja bem desenhado. Como o arquivo de livro tem cerca de 1,5 megabyte e é menor do que um arquivo de música em MP3, ele pode ser rapidamente enviado por e-mail. Nesse caso, o custo de reprodução do conteúdo adicional seria próximo de zero.
A melhor forma de combater a pirataria, observa Lemos, é oferecer livros digitais de forma conveniente e a preço compatível com o nível de renda do país. Talvez só isso não seja o suficiente. Também seria importante ampliar o catálogo de livros digitais disponíveis em português e tornar os conteúdos abertos em vários padrões, uma discussão que não é só brasileira.
Mais atentos, empresários e legisladores podem, com certeza, construir uma história com um final mais feliz para as letras.
(aspas)
Por : Robinson Borges, editor de Cultura Jornal “Valor Econômico”, 09/06/2011
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