O conjunto de regras e princípios que disciplinam as relações jurídicas entre operadores comerciais e destes com o Estado (nacional e estrangeiro), voltadas à circulação internacional de bens e serviços, disciplina que já é tratada por muitos como ramo didaticamente autônomo da Ciência Jurídica (Direito Aduaneiro, Direito Alfandegário etc.), não conta ainda com toda a atenção que reclama a sua relevância econômica, social e política.
Recentes publicações têm abordado a matéria, projetando uma visão jurídica crítica e moderna, contribuindo muito não apenas para o debate teórico, acadêmico, mas também, e especialmente, para a prática diária do Comércio Exterior.
Contudo, ainda são trabalhos isolados, razão pela qual parece não atingirem os seus destinatários com a celeridade e a intensidade que seriam de se esperar.
Essas lamentáveis lacunas no debate jurídico que envolve as questões ligadas ao Comércio Exterior trazem prejuízo e insegurança não apenas aos importadores e exportadores, mas também ao Estado e à sociedade civil como um todo.
Duas decisões judiciais recentes refletem bem a disparidade e o desequilíbrio que a ausência de um debate jurídico mais intenso e contínuo pode representar.
A primeira foi proferida na ação de mandado de segurança nº 2007.72.08.003354-5, em trâmite perante a 2ª Vara Cível e Previdenciária Federal da circunscrição de Itajaí-SC, confirmada posteriormente pelo Egrégio Tribunal Federal da 4ª Região, por meio de julgamento monocrático no recurso de agravo de instrumento (convertido em retido) nº 2007.04.00028349-1.
Suspeitando da valoração apresentada pelo importador em relação a um item, de uma das 14 adições em que a declaração de importação foi subdividida, a Receita Federal do Brasil exigiu do importador, como condição para a liberação de todas as mercadorias: i – o preenchimento – por meio do Sistema Informatizado de Comércio Exterior da Receita Federal do Brasil (Siscomex) – de "Consulta de Declaração de Valor Aduaneiro" (DVA); ii – a apresentação de fatura comercial consularizada ou autenticada no país de origem; iii – cópia do despacho que amparou a exportação dos produtos, perante a aduana do país de origem, autenticada ou consularizada.
A "Consulta de Declaração de Valor Aduaneiro" e a fatura comercial autenticada, que já seriam suficientes para demonstrar legitimamente que o valor declarado pelo importador era verdadeiro, foram por ele (importador) prontamente apresentadas.
Já a cópia do despacho que amparou a exportação dos produtos, perante a aduana do país de origem, conquanto tenha o importador envidado os melhores esforços para a ela ter acesso, não obteve êxito.
Trata-se, contudo, de documento não exigido pela legislação aduaneira nacional. O artigo 46 do Decreto-Lei nº 37/1966 (com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 2.472/1988); o artigo 493 do Decreto nº 4.543/2002 (Regulamento Aduaneiro); e o artigo 18 da IN SRF nº 680/2006; que disciplinam a matéria, exigem do importador apenas: i – o conhecimento de carga; ii – a fatura comercial; iii – romaneio de carga (packing list) e iv – os comprovantes de pagamento dos tributos.
Ajuizado o mencionado mandado de segurança, pelo fundamento de que a exigência do referido documento é ilegal, sobreveio despacho judicial indeferindo a liberação das mercadorias importadas, ao argumento de que: "a necessidade de apresentação do documento não pode ser tida como ilegal, pois decorre do poder de fiscalização conferido à Aduana".
Limitando-se à análise perfunctória que o presente diálogo comporta, constata-se, de início, que o "poder de fiscalização conferido à Aduana" nada mais é do que o conhecido "poder de polícia", exaustivamente enfrentado e homenageado pelos administrativistas.
Logo, sendo poder de polícia, ainda que dotado de certa especificidade, é certo que o "poder de fiscalização conferido à Aduana" também está sujeito indistintamente, para dizer o mínimo, aos princípios da legalidade e da proporcionalidade previstos (explícita e implicitamente) no artigo 37, caput, da Constituição Federal.
Sobre o princípio da legalidade, o artigo 78, parágrafo único, da Lei nº 5.172/1966 (Código Tributário Nacional) dispõe ainda que: "Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder." (grifado)
Já quanto à proporcionalidade no exercício do poder de polícia Celso Antônio Bandeira de Mello escreveu que: "A via da coação só é aberta para o Poder Público quando não há outro meio eficaz para obter o cumprimento da pretensão jurídica e só se legitima na medida em que é não só compatível como proporcional ao resultado pretendido e tutelado pela ordem normativa. (...) Importa que haja proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal a ser atingida." (1)
Só desta ligeira análise já se nota que, na hipótese focalizada, faltou aos operadores do Direito sensibilidade técnica, pois sendo o "poder de fiscalização conferido à Aduana" tão-somente "poder de polícia" não pode ser exercido ao arrepio da lei: não há previsão legal exigindo a apresentação, pelo importador, de cópia do despacho de exportação emitido pelo órgão aduaneiro do país de origem.
Outrossim, em obediência à proporcionalidade, não pode o exercício regular do tematizado poder de polícia ultrapassar a necessária intensidade e/ou extensão da medida fiscalizatória: tendo em vista que já haviam sido apresentados pelo importador todos os documentos exigidos pela legislação brasileira, e considerando que a suspeita levantada pela Receita Federal recaía em apenas um entre vários itens, deveria ou exigir garantia para liberar todo o lote, como permitem o artigo 7º da IN SRF nº 228/2002, o artigo 48, §§ 1º, 4º e 5º da IN SRF nº 680/2006, e os artigos 674 e seguintes do Regulamento Aduaneiro, ou liberar o lote e lavrar auto de infração lançando a suposta diferença de tributos, como determinam os artigos 148 e 149 do Código Tributário Nacional; viabilizando, sempre, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
A outra decisão judicial comentada foi também proferida pelo Egrégio Tribunal Federal da 4ª Região, nos autos do recurso de apelação nº 2002.70.00.076664-0, e foi recentemente confirmada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial nº 754.248/PR.
Trata-se, diferente daquela, de decisão que demonstra como uma abordagem jurídica especializada, conjugada com uma maior aproximação e preocupação com a realidade diária do Comércio Exterior, pode despertar composições mais razoáveis e seguras.
Diante de simples endosso de conhecimento de carga (BL), enquanto a Receita Federal do Brasil apreendeu as mercadorias importadas, e impôs ao importador pena de perdimento das mesmas, sob a suspeita de interposição fraudulenta de terceiro, os Tribunais entenderam que: "Embora a Segunda Turma desta Corte já tenha manifestado entendimento no sentido da legalidade da retenção de mercadorias com base na IN/SRF nº 206/2002, procedimento investigatório exige, para sua instauração ‘fundada suspeita de irregularidade punível com a pena de perdimento ou que impeça seu consumo ou comercialização no País’ (art. 65 da IN nº 206). Tal hipótese não está configurada no caso dos autos, pois a autoridade coatora limitou-se a afirmar que a existência de endosso no conhecimento de transporte indicaria possibilidade de interposição fraudulenta de pessoas na importação, sem quaisquer outras indicações concretas da necessidade de retenção. (...) Conforme se extrai do trecho do despacho decisório acima transcrito, há apenas ‘indício’ e não ‘fundada suspeita’ de irregularidade que sujeite a mercadoria à pena de perdimento, consubstanciada na existência de endosso, e tão-somente isso."
Entenderam os Tribunais nessa segunda oportunidade que o simples endosso do BL não configura "fundada suspeita" de interposição fraudulenta de terceira pessoa, desautorizando, por conseguinte, tanto a apreensão das mercadorias importadas, quanto, principalmente, a imposição de pena de perdimento.
A diferença de postura entre uma e outra decisão judicial ante as peculiaridades fáticas e jurídicas que particularizam o Comércio Exterior bem demonstra a preocupante insegurança que avizinha os que participam diretamente dessa prática comercial especializada.
(1) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo, 23ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 813. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário